Dalva
Damiana de Freitas, ou simplesmente Dona Dalva e em breve Doutora Dalva. A
mulher que é a personificação do samba de roda cachoeirano abre o coração em
uma entrevista exclusiva. Fala sobre o título de doutora honoris causa que
receberá em breve da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, sobre o Samba
de Roda Suerdieck, a Irmandade da Boa Morte, relembra o passado e prestes a
completar 84 anos revela o quer da vida de agora em diante.
A
Cachoeira: Antes de ser a Dona Dalva do Samba de Roda Suerdieck quem era a
mulher Dalva?
Dona
Dalva: Eu, Dalva Damiana de Freitas, era uma operária da Suerdieck. Mas, foi na
fábrica Dannemann que aprendi a minha formação de operária charuteira com a
mestre Maria Matilde. Ela foi quem me ensinou. Tudo era feito na mão. Aprender
as coisas era a maravilha da vida. Naquele tempo, a classe operária não tinha
os direitos que tem hoje. Não tinha reconhecimento. Não tinha nada.
AC:
Como a Dalva operária se tornou a Dalva do Samba de Roda?
DD:
Quando a Dannemann fechou por causa de uma greve. Na fábrica tinha uma foto de Getúlio Vargas, algumas colegas, antes do trabalho
oravam em frente a foto e pediam proteção a ele. Porque ele deu as coisas que
agente não tinha naquela época. Ele deu salário mínimo, férias, licença
maternidade, a gente chamava ele de “Papai”. A gente tinha aquele amor, aquela
devoção. A gente defendia o nome dele. Não deixava ninguém falar mal. Mas, um
dia, a gente chegou pra trabalhar e a foto dele na parede havia sumido. Foi uma
confusão. Todo mundo procurando “Cadê o retrato de papai?” Quando achamos,
estava na lata do lixo, todo rasgado. Aí veio a greve. Tocaram os sinos. Todo
mundo parou de trabalhar. Todas as classes operárias de São Félix participaram.
Derrubavam os bancos das charuteiras que não queriam parar de trabalhar. Os que
não queriam a greve tiveram que ir pra casa. E eu vim embora com a minha mãe
porque ela tinha medo. No outro dia quando a gente chegou pra trabalhar a
fábrica tava com as portas fechadas. Todas demitidas.
AC:
E o que a senhora passou a fazer?
DD:
Fiquei alguns anos parada, até ir para a Suerdieck. Lá, o encarregado de
produção dizia: “Dalva é lenta. Mas, trabalha com qualidade!” e ali nas horas
vagas, eu já fazia meu samba. As outras charuteiras se preocupavam em dar
produção. Porque quem não desse produção era demitida. Eu nunca dei produção na
minha vida. Quando uma colega ficava doente, eu passava caixinha, pra comprar
remédios pra ela. Eu também organizava pra gente participar de festas Nossa
Senhora D'ajuda, Santa Cecília. Então, as outras operárias tomaram amor comigo.
E eu já fazia meu samba. Eu comecei a fazer samba ainda menina pra comemorar o
aniversário das minhas bonecas.
AC:
Então, o samba começou na sua vida como uma brincadeira de criança?
DD:
Sim. Eu fazia casamento de bonecas, terno de reis, samba de roda. O que me
desse na cabeça eu fazia e dava certo.
AC:
Conte-nos um pouco mais sobre a Dalva menina. O que você gostava de fazer?
DD:
Eu já fazia meus quitutes, meus ternos e minhas colegas me apoiavam. Eu pedia
roupa emprestada a elas e fazia.
AC:
Atualmente, como você observa a decadência das festas religiosas?
DD:
É a falta de crença da humanidade. Essa modernidade de agora só acreditam em
muvuca. Mas, eu acho que agente deve acreditar e fazer as coisas como eram
antigamente. Tudo com amor, com dignidade.
AC:
Qual o maior presente que o Samba de Roda lhe deu?
DD:
Conhecimento. Me deu conhecimento. Muitas amizades boas. Enfim, me deu tudo.
Através dele agente criou esse amor, essa força. Antes, agente não sabia de
nada, não conhecia nada. A verdade é essa, não querem que eu fale, mas, eu
falo.
AC:
Ainda existe preconceito contra Samba de roda em Cachoeira?
DD:
Antigamente, ninguém queria saber de samba. Porque era festa de pobre, de
pessoas que não tinham nem roupa. Mas, teve uma época que o samba que eu fazia,
quando saia na rua, parecia os Filhos de Gandhi quando saem na praça. Era um
tapete. Saiam os tocadores com violão, cavaquinho, percussão. E as mulheres
pegavam caquinhos nas fábricas que trabalhavam e eu dizia assim:
"A
faca é minha caneta
A
tábua é meu caderno
E
o pandeiro é o meu tinteiro"
Antigamente,
o único samba que existia, era aquele de depois da reza de Cosme e Damião. Um
sambinha dentro de casa. Eu, Dalva Damiana de Freitas, foi quem fez esse grupo
ser conhecido pela humanidade. Depois disso foi que surgiram vários, vários e
vários.
AC:
Quando surgiu a ideia do título de doutora honoris causa. Como foi pra senhora?
DD:
(emocionada)... Deixa eu respirar meu filho... Eu me sinto feliz porque o
conhecimento é tudo na vida. Eu era reconhecida fora mas, não aqui nesta terra.
Achavam que o samba de roda nesta terra não ia ter continuidade. Eu respondi
que eu com um pandeiro, com uma saia e um pano de costa amarrado na cintura é
samba de roda. É Cachoeira. Então eu me sinto agradecida de o professor Xavier,
esse cidadão ter vindo, ter reconhecido meu trabalho. Agradeço a Deus, porque
esses anos todos ainda não tinha acontecido de pessoas de um grupo ter um
reconhecimento desse tipo.
AC:
O que mudou depois desse título?
DD:
Para mim mudou tudo. Eu me sinto tão satisfeita que eu peço a Deus que me dê
mais anos de vida e prosperidade porque estou esperando tudo de bom para o
Samba de roda Suerdieck. Eu sei que esse título abriu as portas pra gente.e eu
agradeço o professor Xavier Vatin que veio reconhecer o trabalho de uma mulher
de 83 anos, e dia 27 de setembro eu faço 84, dia de São Cosme.
AC:
Foi a maior homenagem que a senhora recebeu?
DD:
Foi. Eu estou agradecendo a Deus todos os minutos. Eu faço 54 anos de samba,
dia 22 de novembro. O reconhecimento que o professor Xavier me deu com esta
carta, este anel, este amor.
AC:
A senhora acredita que este título homenageia também as suas raízes?
DD:
Sim. Toda a minha família. Meus netos, meus bisnetos estão vibrando e
agradecendo a Deus, Todos tocam no samba (novamente emocionada). Estou
satisfeita, muito satisfeita.
AC:
Como a Irmandade da Boa Morte entrou na sua vida?
DD:
Minha avó Vicença Ribeiro da Costa, conhecida como Vicença Xodó, era irmã da Boa Morte no tempo em que a Boa Morte ainda não tinha sede. Não tinham nada.
Eram casas alugadas, vivia de aluguel, cada ano uma casa diferente. Só depois
foi que veio o reconhecimento do sofrimento das irmãs. Porque todas as irmãs
são sofridas. Hoje, eu sou irmã da Boa Morte. Já fui tesoureira e agora sou
escrivã. Então hoje pra mim, tudo é orgulho. Tudo pra mim, chegou na hora
certa. Hoje, eu ainda sento na máquina, ainda coso minhas coisas. Na minha
família todos tocam no samba de roda. Eles enchem aqui essa casa e todos me
chamam de vó. Todos, até os do samba que não são parentes.
AC:
A senhora gostaria de receber alguma visita especial aqui na Casa do Samba de
Roda?
DD:
Gil (Gilberto) me conhece mas, ainda não pode vir aqui nessa casa. Dona
Canô que está completando 104 anos. Eu peço a Deus que dê a saúde dela
reestabelecida, porque ela merece. Porque Dona Estelita fez 105 anos ontem e
Mãe Filhinha dia 25 de outubro faz 108 anos. Mas, eu queria um abraço da nossa
presidente Dilma. Eu queria um abraço de Lula. Todos eles.
AC:
O que a senhora espera do futuro?
DD:
Muita paz, muita tranquilidade, saúde. Que Deus me dê mais alguns anos de
saúde. Eu desejo a grandeza desse título que eu recebi.
AC:
E como a senhora acredita que vai estar aos 100 anos?
DD:
Eu quero estar sentada aqui vendo vocês chegarem pra me abraçar e eu quero
levantar pra sambar. Eu quero sambar.
AC:
Então a senhora espera chegar aos 100 anos sambando?
DD:
Eu tenho uma coisa comigo. Quando Deus me chamar para o mundo da verdade.
Porque esse mundo que nós vivemos é o da mentira. Um fala uma coisa, outro fala
outra e a verdade acaba se tornando uma mentira. Mas, eu espero que quando eu
for me embora, eu quero que todo mundo vá atrás vibrando, cantando samba “Adeus
que eu já vou me embora”. “No samba nasci, no samba me criei, e no samba eu
quero ir embora.” Eu me sinto feliz. Se todo mundo que tiver grupo se sentir
feliz como eu me sinto. Oh, glória! Se eu puder ver todos os grupos crescendo,
orgulhosos pra ter reconhecimento. Para saber o que é a cultura, eu me sinto
feliz. Porque a cultura é a felicidade. A cultura é a grandeza e a cultura é o
coração da gente e acho que todos devem criar esse amor. Agente tem que ter
amor. Sem amor não tem dinheiro e com o amor o dinheiro vem. O amor de Deus
conserva as coisas.
Eu sinto muito orgulho do meu povo, o Samba de Roda é uma referência cultural da Bahia. Sou de Salvador, morei em São Paulo, atualmente moro no Rio de Janeiro, entretanto considero Cachoeira como sendo minha segunda terra. Sempre que posso participo da Feira do Porto, que faz aniversário junto comigo(25 de junho), inclusive foi criada no mesmo ano em que eu nasci(1972). Amo Cachoeira, amo o Samba de Roda do recôncavo baiano. Alcides J. Lima
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